domingo, 11 de março de 2012



Eu odeio e amo tanta coisa. Comigo é tudo ou tudo. Odeio por exemplo o risinho que algumas pessoas dão no final de uma explicação óbvia, como se deixassem subtendido “dã, sua anta”. Mas quando é o meu riso no final da frase soa bem. Odeio a mania que as pessoas tem de menosprezar os outros, de menosprezar o que os outros sabem. Mas encho os pulmões pra criticar a vaca da amiga da minha melhor amiga que se acha no direito de chamar ela de “minha”. Minha filha, sua o escambal!Detesto essa nossa hipocrisia em afirmar que não erra, que não comete deslize. Esse nosso hábito de controle e de fingimento. Gritando pra Deus e o mundo que não é de ferro quando a situação aperta, mas zombando do drama daquela criatura estranha que senta na sua frente na sala de aula. Detesto, deploro, mas também dou risada da professora que faltou a aula porque teve que cuidar de um parente, e me encolho depois envergonhada aguardando o castigo divino. Porque é sempre assim. O erro só parece erro nos outros, mas na gente parece políticamente correto, bonitinho, sempre justificável. Odeio o modo como algumas vadias jogam o cabelo com aquela risada falsa e aguda de 1,99. Detesto aquela pessoa que passa 24 horas por dia com um sorriso no rosto, porque ai eu já acho que não se trata de felicidade ou de otimismo. É só que ela tá vendo todo mundo rindo também, tá vendo um cara gato por perto, ficou excitada e tem que arreganhar os dentes pra parecer simpática. Não sei ser assim. Mas não digo que não seja assim. Apenas não sei como passar sinceridade com uma bigorna rasgando meu peito e me levando pra baixo, ou com os meus nervos borbulhando e quase despontando na pele. Se eu estiver em um dia ruim, e não sei porque isso parece um eufemismo; talvez porque os meus dias ruins tenham a aparência grotesca de séculos obscuros e sangrentos. E se eu estiver em um desses dias, eu posso apenas lamentar, sem ironia, se for o seu aniversário. Já perdi as contas das pessoas que tentaram alguma ponte comigo, que empurraram, forçaram uma relação. Mas acabaram sempre em fracasso. Porque eu sou mesmo essa pessoa fechada, que odeia mostrar os dentes e que não sabe fingir. Não é que eu tenha vontade de ser correta e de não julgar ninguém. Admito que morro de vontade de arranhar a cara de algumas pessoas no asfalto. Eu só não sei fingir, sem mais a acrescentar. Eu sou esse bicho estranho estranhando tudo, que demora tanto pra se adaptar que quando consegue acaba isolada e sozinha, atrasada enquanto todos já avançaram nos seus vínculos de amizade. Eu sou essa pessoa extremamente realista que se atormenta antes do sono pensando mil e uma merdas diferentes. Sou essa menininha frágil e bobinha que se fecha e se afasta porque tem medo, mas que não admite ser tratada como idiota. Acho que vou ser sempre assim, porque essência não se muda, mesmo quando a essência é assim, torta. Sou deslocada. Sou contraditória mesmo, e pensando bem, quem não é? Vou gostar de você no primeiro olhar mas não vou te dizer, vou esperar o ano correr e o outro ano chegar, e depois o outro. E se você não adivinhar vou guardar o afeto e fingir que nunca senti nada. Vou te gostar em silêncio, vou sorrir de vez em quando e baixar os olhos me repreendendo por dentro por tal descuido. Eu venho tentando baixar a guarda, derrubar as barreiras. E sei o que acham, tenho certeza do que pensam. Sei bem a imagem que eu devo passar com meus óculos de grau e minha cara de tempestade. E não vou dizer: “Foda-se, eu não me importo!” Porque eu me importo, sim. Porque todo mundo diz que odeia hipocrisia e que o que vale é ser você mesmo, mas me criticam e faltam me espancar com os olhos pela minha sinceridade. Ninguém gosta da verdade. Quando eles perguntam o que você acha é apenas uma pergunta, porque não vai mudar merda nenhuma mesmo. O mundo é uma avenida congestionada de gente hipócrita afirmando ter caratér e personalidade enquanto tenta derrubar o outro pra sair na frente, tentando desesperadamente passar uma imagem agradável e correta.Inevitavelmente tropeçando nas próprias sabedorias, escorregando, se contradizendo. Nessas horas o cidadão perde a fala e justifica com um: “Ah, errar é humano!” A hipocrisia nos outros dói, incomoda, faz calo nos pés, fere os olhos, fede. Mas na gente é bonito, suportável, como um adereço pesado no pescoço; tudo que a gente faz quando cede a natureza e fazemos ou dizemos alguma cagada é disfarçar. O pensamento pesa com aquela afirmação de dias atrás que foi esquecida na primeira noite de sono logo depois, aí a gente tosse seco e fala do clima ou da próxima aula, do aumento de salário que nunca sai. Fala da bunda da senhora gorda que passa na rua, e todo mundo vira cego também, todo mundo ri e sorri forçado pra disfarçar a flechada pulsando no meio do peito. É assim. Seguimos odiando a hipocrisia, mas a hipocrisia alheia. A nossa é poeira no soalho e pode voltar a ser ignorada outra vez depois de algumas lágrimas de desgosto derramadas pelos mais fracos. Seguimos odiando essa raça hedionda dos homo sapiens, que erram e estão sempre cheios de boas intenções. Fazemos piada do drama alheio, arreganhamos os dentes pra conquistar simpatia, tropeçamos de cara no cascalho e dói em nós também. Nessas horas quem conseguiu conquistar alguma mente fraca com os sorrisos e jogadas de cabelo distribuidas de graça se dá bem. Vai ter alguém pra consolar e passar a mão na cabeça, pra perguntar nem que seja apenas por mera curiosidade: “Uhhh, o que foooooi???” Mas quem vê o mundo em 3D e tem visão de raio-x acaba sozinho, odiando a própria hipocrisia em afirmar que detesta a hipocrisia alheia. Continua vivendo a vida nessa grande lata de lixo que virou o mundo, transbordando até a tampa de gente como eu e você que diz que se importa, que aplaude discursos e boas ações. Que odeeeeeeeeia e abomina a hipocrisia ao mesmo tempo em que se dobra e desdobra pra conseguir se encaixar num grupo. Dói em nós até quando for conveniente. Vai continuar doendo e atrapalhando, e esse ódio vai ser aquietado de vez em quando num tropeço, numa queda, num deslize na própria bosta, quando o “Xiiiii!” se torna um grito no pé do ouvido e o olhar acusador dos hipócritas alheios um tapa no meio da cara. Juliana Nery (des-cicatrizar)

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